terça-feira, 29 de março de 2011

Sono

Os olhos enxergam
cinza
sem cor
pela metade
Os olhos
abaixam
caem
ficam morteiros
O rosto
murcho
frouxo
A cabeça alentece
O corpo
mole
pesado
Um corpo gravitacional

segunda-feira, 28 de março de 2011

quarta-feira, 23 de março de 2011

Imediaticidade

Nas calçadas, passos apressados
Nas ruas, carros congestionados
Buzinas me desorientam
Passo pela lanchonete
Ouço as garrafas que o entregador quebrou
E eu nem me viro para olhar
Uma mulher caiu no chão
E eu nem parei para ajudar
O sinal ainda está vermelho
E o ônibus nem pra me esperar
Da calçada para a rua, passos largos
Vejo crianças cansadas,
presas em cadeirinhas nos automóveis
Me olham morteiras
Corro mais um pouco
Uma bicicleta passa rápida por mim
Tropeço e o moço ao lado não desvia
Caio no chão
Fico
Me demoro a levantar
Pergunto as horas
O taxista não me diz
Vejo as placas
Não me encontro
Procuro pessoas
Não as reconheço
Busco você
Te perdi
Acho que conheço essa praça
Não sei onde estou

terça-feira, 22 de março de 2011

23:00

Como um peixe aberto e despedaçado que o restaurante de temaki abandonou para fora do lixo, ele estava ali. Jogado. Rompido. Com o ânus e a moral ferida. O bueiro recebendo todo o sangue grosso e fedido. Um homem forte e grande, dono de passos calmos, se afasta tranquilamente do jovem corrompido. Enche seu pulmão de nicotina e devolve, na fumaça, para a cidade, sua sensação de bem-estar maior. Desaparece na neblina da rua vazia. Deixa sua vitória forçada, exigida e roubada. O cara do chão continua sem calças. E sem dentes. O pênis ralado na calçada parece um pedaço de pano velho que caiu do penúltimo andar e está esquecido no telhado da garagem. O vento frio contribui para o aumento da ardência no rasgo da barriga. O que era garoa, agora é chuva forte. Pingos grossos e pesados intensificam o frio. Se misturam com o suco pastoso de sangue. Escoam pela calçada suja. Os olhos pretos e grandes de pessoa pequena saem arregalados de dentro do carro estacionado. Sim, há um carro na rua ao lado do jovem. Ele esteve ali o tempo todo. Com a porta do passageiro aberta. O tempo todo. Como duas jabuticabas enormes e maduras aquele olhar infantil talvez ainda tenha alguma ingenuidade. Sem saber o que fazer ele repousa ao lado do corpo morto. Deita sem relaxar. Espera o que não vai acontecer.

quinta-feira, 17 de março de 2011

Sintoma de alegria

E se pudéssmos voar
E se o mundo parasse pra se abraçar
Imaginar o infinito
Viver a felicidade
E se existisse a verdade
Uma palavra sincera
O pote de ouro no fim do arco-íris
A pele que não cai
A paixão que não acaba
A meia que não fura
A louça que não suja
O ônibus que eu não perdi
E se a guerra nunca existiu
Se a bolsa nunca caiu
a terra nunca secou
e a comida nunca estragou
E se a queda não machucasse
e a bala não ferisse
O pote de ouro no começo do arco-íris

terça-feira, 15 de março de 2011

Á Luz da Lua

Depois de um dia penoso o que ela mais desejou foi ver a lua cheia. Na noite refrescante de céu recheado com estrelas, a lua se mostrou. Nenhum pouco tímida. Estreitas nuvens acamavam a lua sem cobrir o seu brilho branco. Então ela, não a lua, depois de pisar na grama e atravessar a sala de casa se despiu no banheiro. Se libertou da roupa pesada e sentiu percorrer pelo seu corpo cada fração de vento úmido. Os pêlos de seu corpo se eriçaram num arrepio delicado, confortante. A claridade que tomou conta do banheiro se fez unicamente pela generosidade da lua. E ela, não a lua, não poderia ter desejado ser banhada por algo mais poético.

quinta-feira, 10 de março de 2011

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Folha em branco
Caneta em diagonal
Cabeça em processo
Momento de microcefalia
e macrocefalia subjetivas
Diferentes neurotransmissores
para diferentes palavras
As sinapses as unem
O poema se concretiza
sem limites reais
A materialização dele
muito me apetece

quarta-feira, 9 de março de 2011

Confusão

Está aqui, está guardado, revirando-se em mim. Fervendo em perguntas e dúvidas meu pensamento vai e volta, vai e volta. Se repete como as ondas do mar. Se repete, então, na diferença, na novidade, na velocidade. Tão rápida esta que preciso me concentrar pra saber o que realmente se passa dentro da minha cabeça. Dentro do meu coração. Com os meus sentimentos. Com as minhas escolhas. Minhas verdades. Verdades? Não, minhas decisões. Minhas vontades. Uma dualidade idiota. Um fato que fere meu mais íntimo desejo, meu maior prazer. Uma música que se repete. Uma onda elétrica que percorre cada centímetro de mim. A sensação de sentir tudo o que há para ser sentido. A sensação posterior do vazio. Tudo. Nada. Tudo. Nada. Vai. E volta. O mar. O meu. Eu.

domingo, 6 de março de 2011

Elisa

Desmonta seu guarda-roupas
e eu me despedaço junto
Faz a sua mala
e eu me faço em tristeza
Leva as suas coisas
e eu me perco junto delas
Me abandona a sua presença
Faz-se a falta
A presença da falta
A presença do que já não tenho
A tua ausência
O meu olhar caído
O meu sorriso amarelo
O seu encanto distante
A saudade manifesta

quinta-feira, 3 de março de 2011

Aconteceu

Um encontro de dois
Uma rua encurvada e deserta
Árvores aliviam a tarde quente
Os dois corpos se olham frente a frente
Onde deveriam ter carros
Os olhares se unificam
Só se ouve respiração e gozo
Duas línguas se lambem
Agora um estalo agudo e molhado
Já não se sabe o que é saliva
e o que é chuva
Apenas o prazer
Apenas o desejo

quarta-feira, 2 de março de 2011

A Maior Vontade

Esses dois copos cheios de bebida. O meu e o seu. Este banco, esse banco. Sua respiração e a minha. Seu cheiro que me amolece e me arrepia de desejo. Esses olhos. Ah, esses olhos!
Esses dois copos meio cheios, meio vazios de bebida. O meu e o seu. Este banco. Esse banco. Sua respiração ofegante. O cheiro de whisky que vem da sua boca e me embebeda.
Esses dois copos vazios de bebida. O meu e o seu. Este banco, esse banco. Esse agora tão perto deste. Seus olhos semi abertos e essa boca ousada que me faz querer ir com você.
Nós dois. O tapete bonito do restaurante do hotel. O elevador. O tapete bonito o corredor do hotel. A porta do quarto. Eu e você. Essa cama tão desejada. Eu e você. Este travesseiro. Esse travesseiro. O meu e o seu. Se já não estivéssemos roncando eu até que desligaria a luz do abajur.

terça-feira, 1 de março de 2011

Um Lugar

Num centro sujo esteticamente cinematográfico pra quem vai escrever um texto como esse o cheiro de cachaça impregnado na roupa alheia de dois dias atrás se mistura com o bafo quente de cigarro que sinto na boca de quem passa. Multidões socadas se permitem encostar generosamente nos corpos vizinhos para conseguir um lugar no ônibus ou pelo menos nele entrar. A igreja em reforma abriga os ratos que logo vão migrar para o boteco ao lado. As calçadas desiguais enganam os pedestres que sentem arder suas narinas com o fedor invasivo da urina que algum bêbado ou até um morador de rua deixou cair pesadamete ali, aqui. O cheiro agudo piora quando uma velha exala seu perfume doce de quem está pronta para ir ao bingo. As estátuas das praças já não se enjoam com o odor deixado pelas pombas em suas cabeças cor de bronze carcomido e assistem o primeiro beijo tímido de um casal; e também o fim da história de outros dois. Elas imaginam o que aconteceu com o menino que levou bronca do pai e se comovem com o choro daquela mulher. Aquela que ontem mesmo passou por ali entupida de craque berrando por causa de um homem. Os prédios altos, sujos e escuros ao competirem com outras arquiteturas escondem o último sexo sem consentimento ocorrido na cidade. Eles abrigam os sujeitos expulsos de uma rua em revitalização. A felicidade boba de um estudante sortudo que ganhou cachaça em dose tripla do dono do bar se confunde com a amargura de um recém desempregado que acaba de chegar para com o jovem dividir o balcão. A música pesada de um bar underground encontra a reverberação do samba de raiz que diverte mais alguns na mesma rua. Eu canto o que eu vejo. E eu vejo diversidade. Eu escrevo o cheiro que entope meu nariz. E eu respiro putrefação. Eu falo do que eu sinto e isso não é tão singular assim. Medo, interesse, pavor, curiosidade, repulsa e vontade. Um turbilhão numa caminhada. Uma imensidão num minuto. Diversas magnitudes num lugar.